Entendendo a gauchada
Publicado em 03/09/2021 14h59 - Atualizado há 3 anos - de leitura
Já estamos em setembro, o mês do gaúcho e da revolução farroupilha, embora por aqui vivamos numa região de colonização europeia bem diferente daquela onde surgiu o gaúcho histórico, o gaúcho lendário que ainda hoje circula por parte do Rio Grande, do Uruguai e da Argentina.
Aquele gaúcho que povoa nosso imaginário e nossa cultura surgiu de uma mistura entre portugueses, espanhóis, escravos negros e índios charruas e minuanos. Após as guerras guaraníticas, eles se tornaram errantes, vagando pelos campos, caçando os cavalos extraviados das extintas missões, e vivendo basicamente de carne.
No campo havia poucas mulheres. Aquelas que vieram com os portugueses já vinham casadas. Assim, a reprodução humana dos gaúchos teve a participação decisiva das mulheres indígenas (à exceção dos Kaingangues e dos Coroados, que não se misturaram). Foram, pois, elas as responsáveis pela presença e multiplicação do gaúcho. Ou seja, a população do Rio Grande tem sangue índio. Somos, efetivamente, uma população mestiça.
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Na história colonial, os gaúchos errantes na pampa eram convocados para as guerras. Eram excelentes cavaleiros, tinham forte potencial de luta, e cultivavam valores como coragem, bravura e independência. Estas virtudes são até hoje exaltadas. A luta pela liberdade, porém, sempre foi algo pouco esclarecido. Ora lutavam de um lado, ora de outro. O que então, seria a tal “liberdade”? Ninguém sabe. Para eles, porém, valia mais a luta, o manuseio do cavalo e das armas, a coragem e o fato de que jamais fugiam de uma batalha.
Talvez o que o gaúcho chama de “liberdade” seja aquilo que já perdeu, isto é, a possibilidade de cavalgar pampa afora, sem rumo e sem cercados. Hoje, o que lhe resta são os chamados “corredores” (espaços entre as estâncias em que pode transitar sem pedir licença). A liberdade dos campos sem fim, que parece ainda existir na alma gaúcha, concretamente já não existe mais.
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Curiosidade: a palavra “pampa” pode ser masculina ou feminina (adjetivo de dois gêneros). Mas os livros e o linguajar gaúcho fazem referência, majoritariamente, a forma feminina, “a pampa”. É como se, no íntimo, estivéssemos falando de uma terra-mãe. Talvez seja este o significado mais profundo.
Leonel Gomez canta “a pampa é um país com três bandeiras”. E na famosa música “Herdeiro da pampa pobre” (de Vaine Darde e Gaúcho da Fronteira), ouvimos: “Porque não quero deixar pro meu filho a pampa pobre que herdei do meu pai”.
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Para garantir o território, o império português criou o sistema de sesmarias, doando imensas estâncias e fazendas aos seus protegidos. Formou-se uma oligarquia rural que desde longa data manda na política do sul. As áreas de campo ainda hoje estão nas mãos de herdeiros de várias gerações, que usufruem de suas rendas, a maioria vivendo bem longe do campo. São os parasitas oligárquicos.
Criou-se, de fato, um sistema de latifúndios. O gaúcho errante ficou sem nada, transformado em peão, sem qualquer amparo e vivendo de serviços temporários (por exemplo, os domadores e os alambradores). Para eles, restaram os valores de bravura e independência.
Isso ajuda a explicar o que acontece no Rio Grande atual. A região de pampa é a mais pobre do Estado e uma das mais pobres do Brasil. O latifúndio, aliás, sempre traz este resultado. Ele produz pobres. Riqueza social, nenhuma. E também não aceita evolução social. É um sério e interminável problema para o nosso Rio Grande amado.